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Carta Aberta às Mães de Crianças sem Alergias Alimentares

Queridas mães de crianças sem alergias alimentares,

Eu, que não me recordo de alguma vez ter invejado alguém (excluindo, talvez, a primeira menina da minha rua a ter a Bota Botilde), dou por mim a sentir um bocadinho de inveja vossa.

Gostava de, tal como vós, ter o à vontade para entrar em qualquer restaurante e sentar-me, descontraidamente, a saborear uma refeição com a minha família.

Gostava de, depois de um dia extenuante de trabalho, poder comprar uma refeição já feita e não ter de ir directa para o fogão (sem passar pela casa de partida!). Adorava que uma refeição fosse somente isso mesmo e não tivesse de estar, constantemente, com o “radar ligado”.

Adorava ir de férias sem a despensa atrás e ter de, invariavelmente, cozinhar todos os dias (ainda que de biquini).

Tal como vós, quando o meu filho tosse ou lhe aparecem umas borbulhas, gostava apenas de constatar: “está com tosse” ou “apareceram-lhe umas borbulhas” e não listar mentalmente tudo o que ele comeu/contactou nas últimas horas/dias e ficar na dúvida se aquilo se trata, ou não, de uma reacção alérgica.

Quando recebo convites para as festas de aniversário dos vossos filhos fico sem pinga de sangue, mas não é porque esteja a pensar no presente que terei de comprar ou porque seja anti-social (bem, talvez só um bocadinho). Na verdade, uma festa de aniversário infantil é a mais radical das experiências para mim. Numa mesa onde há cupcakes, cake-pops, guloseimas variadas e bolos de toda a espécie, eu vejo cianeto, arsénico, antrax… não é uma visão lá muito festiva pois não? E se há azar? (lembram-se deste anúncio?)

Dirão que estou sempre a falar no mesmo. Sim, é verdade. Estou sempre a falar no mesmo, mas, se o faço, é porque conto convosco para me ajudarem a manter o meu filho em segurança. Se vissem uma criança lançar-se a uma movimentada estrada tratariam de a impedir, não é? As consequências poderiam ser terríveis. Aqui, passa-se exactamente o mesmo.

Por último, mas não menos importante, quero que saibam que isto não é uma escolha nossa, não é uma moda, não é uma dieta de exclusão maluca que nos lembrámos de fazer.

É uma condição clínica, potencialmente mortal.

Conto com a vossa ajuda?

Texto publicado originalmente na Up to Lisbon Kids, a 18/05/2015.

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E o mundo não se acabou!

Anunciaram e garantiram que o mundo ia-se acabar (como na música da Adriana Calcanhoto e, sobretudo, na minha cabeça), por ter estado longe do pequeno Copinho de Leite uma semana, mas a verdade é que não se acabou.

A minha viagem de trabalho correu lindamente e foi bom ter estado uma semana inteira arredada das lides domésticas, focada exclusivamente em mim. Em abono da verdade, soube a retiro espiritual, ainda que não tenha parado nem um segundo.

A Catarina Beato do blogue Dias de uma Princesa diz que a vida resolve-se sozinha e, na minha ausência, o pai Copinho de Leite optou por resolver sozinho algo que me andava a inquietar há várias semanas: as análises sanguíneas do nosso pequenino. Pela primeira vez, foram feitas no Hospital D. Estefânia e consta que correram tão bem que ele nem chorou (e se este miúdo é dramático, senhores!). Como seria de esperar a minha condição de mãe agraciou-me logo com um pesado manto de culpa, com alguns apontamentos de ciumeira, por não ter estado presente neste momento. Nada de novo, portanto.

Amanhã é dia de consulta de Imunoalergologia e ficaremos a saber como é que se encontra cotado o “Índice Copinho de Leite”. Esperemos que em baixa. 🙂

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Em análise

A primeira vez que o Pedro fez análises sanguíneas – aquelas que viriam a comprovar de modo inequívoco a sua alergia alimentar – foi quando ele tinha apenas quatro meses.

Hoje, pensando bem, não sei onde é que eu estava com a cabeça, quando me apresentei sozinha com ele, naquele serviço de análises do hospital onde ele tinha nascido. Pensando ainda melhor, não sei porque é que não fugi dali quando a jovem que iria fazer as análises disse, ainda mais assustada do que eu: “ah, um bebé tão pequenino, não estou nada habituada…  é melhor ir chamar o meu colega!”

Eu não sou propriamente uma daquelas pessoas que não podem ver sangue, mas  hoje sei que não estava minimamente preparada para aquilo (tenho “problemas” com hospitais, mas isso agora não interessa nada, como diria a Teresa Guilherme).

O tal colega lá chegou e começou a picar o meu bebé, sem sucesso algum. Demorou pouco tempo até o Pedro começar a ficar roxo de tanto chorar e, foi aí, que me senti mesmo a desfalecer. Lá me segurei a uma maca e tive de aplicar a mim mesma dois valentes pares de estalos imaginários, para ver se atinava. O meu pequenino só me tinha ali a mim, pelo que, eu não me podia dar ao “luxo” de desmaiar. E não desmaiei.

O técnico conseguiu tirar um bocadinho de sangue, adiantando logo que não sabia se chegaria. Eu não quis saber. Saí dali o mais rápido que pude. Passadas várias horas o meu bebé ainda soluçava. Felizmente, o sangue chegou.

As análises foram repetidas aos 12 meses e lá fui eu, ainda que, desta vez, acompanhada. A coisa não correu bem outra vez e eu estava tão aflita que acabei por passar o meu nervosismo para a criança. A partir daí ficou decidido que eu não assistiria mais e assim tem sido.

Agora, a altura de fazer análises está outra vez a chegar e eu já ando sem pinga de sangue, só de imaginar que vão tirar o dito, ao meu menino. Pela primeira vez, nesta epopeia, será num hospital exclusivamente pediátrico, o que me está a deixar com vontade de voltar a tentar comparecer e não deixar esta tarefa exclusivamente a cargo do Pai Copinho de Leite. Tenho duas semanas para decidir. Glup.

www.ocopinhodeleite.com

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Crua realidade

Às vezes, temo que o tom propositadamente bem humorado e descomplicado deste blogue seja confundido com o daquelas mães bloggers, cujos filhos estão sempre impecáveis nas suas roupas de inspiração Amish, dormem a noite toda, adoram sopa, jogos de tabuleiro e são super sociáveis. O tom escolhido não é mais do que um “comic relief” (alívio cómico, se preferirem) de uma realidade muito, mas mesmo muito, dura.

O mundo das alergias alimentares é tudo menos cor-de-rosa, se é que ainda restam dúvidas.

Há incertezas. Há culpa. Há exaustão parental. Há vómitos em jacto, há diarreias monumentais raiadas de sangue, há diarreias monumentais com muco. Há diarreias com muco e sangue. Há, inevitavelmente, muito sabão azul e branco ao barulho (comic relief alert!). Há tosse, pieira, saturação do oxigénio muito baixa. Noites em claro. Resistência à mudança.  Há manchas e borbulhas que não se percebe de onde vêm. Há manchas e borbulhas que se percebe logo de onde vêm. Há urticária, eczema, comichões e inchaços. Há paragens no crescimento. Há irritabilidade crónica. Há incompreensão. Há descidas bruscas de tensão arterial. Há dificuldades em respirar. Há inchaços da língua. Há paragens cardíacas. Há perdas de consciência. Há edemas da glote. Há mortes.